Criam-se cidades através de desenhos de arquitetura ou pela legislação urbana que delimita e, de certa maneira, dá forma às futuras construções. Setores urbanos e até cidades inteiras, como Brasília, nasceram de um único esforço de construir. A capital nacional foi pensada e construída em cinco anos. Muitas outras cidades espalhadas pelo mundo nasceram desse modo. Mas a grande maioria delas surgiram pequenas, foram crescendo e necessitaram de uma regulamentação para sua expansão. Criou-se então um intrincado sistema de leis que regulam o ato de construir. Ao determinar a altura máxima, o tanto que podem ocupar do terreno e que tipo de atividades que cada construção pode abrigar, o código de edificações está, em última análise, desenhando uma cidade através de suas normas.
Um terceiro modo de criar cidades ou mudar sua face são as intervenções urbanas em áreas antigas ou ditas degradadas. Modernamente usa-se o termo revitalização de uma zona urbana para conferir-lhe mais qualidade, alterando seu aspecto morfológico e agregando novas funções para garantir animação urbana, ou seja, vida. Haussmann, prefeito de Paris no século XIX, fez diversas intervenções naquela cidade em nome da qualidade e na idéia de que os espaços abertos como praças e grandes avenidas, deveriam predominar como grandes estruturadoras do espaço urbano. Construiu diversos bulevares pontuados por edifícios públicos e normatizou as futuras construções para que seguissem um mesmo padrão construtivo, transformando a cidade no que é hoje em detrimento da antiga Paris medieval.
As ações do poder público nas cidades sempre se basearam no discurso da qualidade e na melhoria do ambiente aos seus cidadãos. O estatuto das cidades, lei federal que regulamenta o crescimento das cidades brasileiras desde o ano de 2001, procura qualificar o meio urbano e reduzir distorções nas relações internas da cidade. Passados dez anos de sua promulgação, vemos muitos avanços no que se diz respeito a um melhor ordenamento das cidades. Elaborados por uma equipe de técnicos e legitimados pela comunidade através das audiências públicas, surgem planos locais norteados pelo estatuto com uma base legal comum, porém com os parâmetros próprios de cada cidade. Os planos diretores de cada localidade podem, portanto, disciplinar o crescimento de suas cidades com o intuito de conferir qualidade e justiça.
Contudo, cabe uma observação. Confesso que acho estranho o que acontece em alguns planos, ou seja, determinam parâmetros mínimos para construir visando qualificar o meio urbano. Porém quando se trata de habitações de “interesse social”, esses requisitos podem ser reduzidos à metade. Parece que a lei dispõe sobre duas qualidades de cidadãos. Nessas cidades permite-se reduzir à metade dos padrões, para o caso de ocupações ditas sociais.
A lei propondo dois parâmetros de morar está, em certa medida, propondo dois parâmetros de cidadania. É um paradoxo pensar que flexibilizando as exigências irão facilitar o acesso aos menos favorecidos. Essa idéia está, no mínimo, equivocada. O acesso deve-se dar em outras esferas. Devemos encarar o tema com mais profundidade, pois essa alternativa visando justiça resulta em mais segregação espacial e pior, sem qualidade.
Voltemos a Brasília de hoje. O que existe? Uma cidade originalmente idealizada para a qualidade do espaço. Contudo não se evitou que ao seu redor nascessem, como órfãos de pais vivos, as cidades satélites desprovidas de qualquer cuidado.